quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Borges, Resnais e a Vertigem da Descrição


Para um cinéfilo, o contato com a obra de Jorge Luís Borges é sempre estimulante, principalmente pelo forte teor imagético que ela guarda. O escritor argentino possui uma peculiar capacidade de elaborar descrições minuciosas de fatos históricos (apuráveis ou não), objetos, seres e lugares os mais insólitos e fabulosos, sem por isso tornar-se hermético.

Aquele leitor, então familiarizado com a linguagem cinematográfica, precisa não raramente extrapolar o seu prévio conhecimento, para poder mergulhar naquilo que Borges lhe tenta transmitir. Foi o meu caso, em particular, ao ler pela primeira vez o famoso conto O Aleph. No momento em que o protagonista descobre o tal objeto fantasioso, uma esfera negra cujo diâmetro mede dois ou três centímetros, o autor inicia uma longa enumeração das visões que essa esfera proporcionou ao personagem: “Cada coisa (a lua do espelho, digamos) era infinitas coisas, porque eu claramente a via de todos os pontos do universo”. Minha reação foi afirmar que a projeção a qual o personagem teve acesso jamais poderia ser uma projeção cinematográfica comum, pois, eu pensei, como poderia um filme, mesmo se o quisesse, abster-se da eleição de um ponto de vista na constituição de sua mise en scène a fim de compreender, por contrário, essa visão totalizante das coisas, do universo? Da minha parte, deparei-me com uma limitação do cinema, enquanto Borges mais sabiamente parecia visualizar uma extrapolação dos seus fins…

O cinema ainda não foi inventado!”, exclamara Bazin, que também afirmava que o cinema possuía uma origem mítica, a qual já se deixava entrever-se ao longo da história pelas técnicas de reprodução do século XIX, como a fotografia e o fonógrafo. Tratar-se-ia, pois, do mito do realismo integral, da recriação do mundo à sua própria imagem, uma imagem na qual não era ponderada a hipótese da liberdade de interpretação do artista nem a irreversibilidade do tempo. Para Bazin, o cinema é um fenômeno idealista e que sempre existiu na imaginação dos homens, pois um cinema mental (no conceito de Ítalo Calvino) nunca cessou de projetar imagens em nossa tela interior, inclusive (sobretudo?) a partir da literatura. No entanto, assim como o homem precisou esperar pelo avião para poder voar como Ícaro, a vontade de reproduzir a realidade tão próxima de sua aparência material somente pôde ser viabilizada à medida que a técnica evoluiu.

A evolução do cinema, portanto, nos termos previamente trazidos pelo mito do cinema total, não está finalizada, pois eternamente ele evoluirá rumo a um realismo maior. O que diríamos se no futuro for possível de fato a imersão do espectador nos filmes, de forma a superar as recentes tentativas difundidas pelo uso da tecnologia 3D? Será que um dia experimentaremos sensações olfativas e táteis verídicas e constantes dentro de uma sala de projeção? Em Borges, um dos seus personagens mais fascinantes vive isso intensamente, como ninguém jamais viverá: ele se chama Funes, o Memorioso, porque após sofrer uma queda de cavalo ficou paralítico, mas em compensação adquiriu memória e percepção infalíveis, que o fazem capaz de não só poder reconstituir mentalmente todos os sonhos, entresonhos e dias inteiros (no que lhe requer exatamente dias inteiros) como para cada imagem dessas ligar sensações musculares e térmicas.

Mais uma vez a descrição literária de Borges para um fenômeno extraordinário nos remete a qualidades envolvidas com o dispositivo cinematográfico, tanto no texto (a experiência, a visibilidade, a percepção) quanto no subtexto (a memória, uma constante em seu trabalho). Não se trata aqui de dizer que Borges procurava relacionar-se com as teorias bazinianas, mas de todo modo admitir que enquanto o cinema total, ideal ou platônico visa a uma reprodução fidelíssima da realidade a fim de experimentá-la melhor (pois é esta a finalidade, já que se se quisesse apenas a realidade, bastaria olhar pela janela), Funes já a possui. Noutras palavras: o cinema conforme os apontamentos teóricos do francês encontra Borges na busca por meios para descrever o infinito.

Outra de suas tentativas conhecidas é o conto A Biblioteca de Babel em cuja primeira frase encontra-se enunciada a questão em pauta: “O universo (que outros chamam a Biblioteca) é composto de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos postos de ventilação no meio, cercados por balaustradas baixíssimas”. Nesse trecho de abertura, Borges equivale todo o universo a uma Biblioteca, cujas características ele insistirá em descrever ao longo do texto, com um estilo que parte da enumeração e de uma irônica objetividade para fascinar-nos pelo “encanto exótico de um outro pensamento”, mas que na realidade evidencia “o limite do nosso: a impossibilidade de pensar aquilo”, como já afirmou Foucault.

Ao recurso de estilo aplicado nessa procura de descrever o imponderável — empregado por Borges nesse conto, porém igualmente presente nos demais contos citados anteriormente e em outros exemplares de sua extensa obra — nomeamos de “vertigem da descrição”. Nesse sentido, é preciso que definamos a que noção se refere o emprego de “vertigem” e a qual funcionalidade servirá a “descrição”. Normalmente, a vertigem é tomada no seu sentido clínico, ou seja, como um sintoma que envolve tontura e pode provocar náuseas, vômitos, ilusões de movimento etc., e cujas causas podem se associar a distúrbios nos ouvidos, na pressão arterial, no sistema nervoso. No entanto, é evidente que não adotaremos vertigem no seu sentido literal, mas sim como uma metáfora hiperbólica para um tipo de experiência estética.

A vertigem interessa-nos não pelas conseqüências que provoca, mas pelo efeito de vertigem. A fim de descrevê-lo, tomemos como ilustração a cena de Um Corpo que Cai, em que o personagem de James Stewart, ao subir uma escadaria, sente a vertigem de uma provável queda. Stewart está parado no alto da escada, mas visualiza o fim do vão, o que o faz sentir a vertigem. O movimento de câmera empregado por Alfred Hitchcock é expressivo: ao mesmo tempo em que há um zoom in para o fundo do quadro, há um movimento de recuo do aparelho para onde se infere que está Stewart. Isso é repetido algumas vezes.


Talvez o que justifique a extrema funcionalidade desses recursos no filme de Hitchcock é que a vertigem aparece como um sintoma ambivalente: agem nela, simultaneamente e com a mesma intensidade, a sensação de afastamento de um ponto e a sensação de permanência nele próprio. O sujeito, portanto, é atingido por um paradoxo: ao mesmo tempo em que sente que avança rumo ao ponto final, ele interage com a repetição, pois está fixo num ponto de origem. Dessa maneira, ficam assim ilustradas as principais características do efeito de vertigem: alterações na percepção do espaço e da temporalidade (a repetição do artifício faz parecer que a duração da cena foi dilatada).

Tanto Borges quanto Alain Resnais são familiarizados com este recurso que pode causar a vertigem: a repetição. No entanto, interessam-nos aqui os momentos em que a repetição vem aliada à descrição, como no caso de A Biblioteca de Babel, para Borges, e Toda a Memória do Mundo (1956), para Resnais. Isso favorece casos que não sejam de repetição como reprodução do mesmo, mas sim de uma repetição diferencial, aquela onde se notabiliza o novo a cada informação despejada.

As duas obras têm uma semelhança evidente: Borges analisa a chamada Biblioteca Universal; Resnais faz um passeio pela Biblioteca Nacional Francesa. Os relatos de ambos apontam para a grandiosidade dos edifícios. O primeiro tende imediatamente a assimilá-la ao Universo: a origem dela e do tempo são segredos omitidos aos homens; contudo, na biblioteca, numa ordem secreta (fala-se do “catálogo dos catálogos”, do qual não se tem notícias que alguém já o leu), num número restrito de estantes por paredes, escritos com uma obsessiva quantidade de linhas por páginas, e por um número médio de letras por linhas, figuram todos os livros que se possam imaginar, afirma o narrador, que se proclama um funcionário local: “Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catálogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pôde escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito.

O narrador do curta de Resnais, por sua vez, começa por afirmar a razão de existência da Biblioteca Nacional Francesa: ela é uma fortaleza construída para preservar a história do homem, pois “a memória deste é deveras curta”. Inicia-se, então, seguindo as suas palavras, um passeio pelas alas da biblioteca, um gigantesco museu, sistematicamente enumeradas: manuscritos, periódicos, estampas, moedas, mapas. Em seguida, é descrito o penoso trabalho de catalogação de um livro: ele deve ser selecionado, analisado, classificado, numerado até figurar entre as prateleiras. Comenta-se também como acontece a preservação do material e as trocas de mensagens que possibilitam que o livro venha, com precisão, dos obscuros corredores dos acervos até, finalmente, as mãos de um leitor interessado, por sua vez, em disciplinas as mais distintas: astrofísica, fisiologia, teologia, taxonomia, filologia, cosmologia, mecânica, lógica, poesia, tecnologia, em suma, este é o momento onde o livro se abre à mente humana e aos campos infinitos de suas invenções.

Borges lança mão de uma linguagem que adquire contornos matemáticos e aparentemente objetivos. A sua intenção, porém, parece estar em querer lançar o leitor num efeito de suspensão (ou como chamamos antes, de vertigem) à medida que esse leitor, enquanto receptor das informações repassadas cada uma com a mesma dimensão de importância tenta visualizar mentalmente, e, creio eu, raramente com sucesso, como se configuram as “galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas”, tal como no trecho a seguir: “A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal. Uma das faces livres dá para um corredor apertado, que desemboca em outra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do corredor, há dois gabinetes minúsculos. Um permite dormir em pé; outro, satisfazer as necessidades físicas. Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva rumo ao mais remoto.

Resnais também lança mão dos recursos do acúmulo de informações e da repetição formal no seu curta-metragem. Os eventos mostrados em sequência incorporam o funcionamento organicista de uma máquina bem oleada, tão bem demonstrado nos planos zenitais e planos gerais onde são vistas pessoas individualizadas fazendo suas respectivas tarefas. O espectador pode se perder nos travellings em corredores estreitos, cujos maiores segredos de organização ainda nos escapem ao fim do filme, pois tratam de toda a complexidade vertiginosa que envolve a preservação de uma cultura ao longo dos séculos. Tanto no conto de Borges quanto no curta-metragem de Resnais nota-se, enfim, a descrição enumerativa e classificatória de dois sistemas complexos, labirínticos, fundamentados, porém, numa ordem que garante a perpetuação de seus componentes, espera-se, à eternidade.

(Publicado em Filmologia, Agosto, 2012)

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