quarta-feira, 2 de dezembro de 2015

Friedrich-Godard


Dois observadores solitários: o caminhante, no topo da montanha contempla um vasto relevo parcialmente coberto por névoa; Jean-Luc Godard, na sua casa, na sua biblioteca, encontra-se incumbido da tarefa de também observar uma “topografia”, coberta por uma névoa especial: o tempo, ou melhor, a memória, pois, como a névoa da paisagem, que avança e revela na mesma proporção que esconde, ela permite que algumas coisas sejam vistas sucessivamente no lugar de outras. Em ambos os casos, estamos em terrenos cujos observadores jamais serão capazes de mapear em sua integridade, apesar de ser isso a ambição de toda ciência: com um lápis, dispor no papel todas as leis do universo; com alguns canais de vídeo, trazer para dentro de casa a história do século XX através do cinema. O mistério prevalece, as pontas permanecem soltas: esse é o tom do ensaísmo godardiano, para quem, como escreveu Jean-Claude Guiguet em 1989, “as ruínas do tempo são mais luminosas que todos os discursos e todos os métodos pedagógicos”.

A postura do caminhante sugere uma aura de conquistador, mas essa é uma primeira impressão dissipada pela própria presença do nevoeiro na composição da pintura, pois este impede que o homem esteja com o domínio da situação: caso ele continue suas aventuras rumo às montanhas que enxerga ao longe, estará ciente de que as condições que a natureza lhe impõe são adversas e de que ele não tem como saber o que lhe espera. Cada rochedo que ele enxerga é apenas a ponta de algo muito maior e que está imerso nesse “mar de névoas” que nomeia o quadro. Que animais ele encontrará? Que plantas venenosas ele estará tentado a comer? Que outros homens o ameaçarão? Em cada ilha, riscos diferentes.

Godard também se arriscou migrando de “ilha em ilha” na sua série de televisão composta de elementos heterogêneos: imagens de arquivo, cenas originais, pinturas, desenhos animados, música erudita, música popular, literatura, arte dramática, Hollywood, campos de concentração, cinema italiano, nouvelle vague. Histoire(s) du cinéma é o diário de bordo, o testemunho dessa travessia que caminhante e cineasta se comprometeram a realizar. “Se um homem atravessasse o Paraíso num sonho, e lhe dessem uma flor como prova de que tinha estado lá, e, se ao acordar encontrasse essa flor em sua mão… então o quê dizer?”. Essa é uma frase de Coleridge, citado por Borges, a que se segue o comentário de Godard que encerra o filme, pronunciado sobre uma foto dele mesmo: “Este homem fui eu”.

Imaginemos que o andarilho do quadro ganhasse vida e se destacasse do resto da pintura. Nessa situação, ele se daria conta que aquilo que ele observa não possui a perspectiva que ele imaginava ter; que as montanhas não estão distantes umas das outras; que, na verdade, não existem “ilhas” isoladas. Se ele levantasse sua mão direita, poderia segurar alguns centímetros quadrados de tinta de cor azul claro e trazê-los para perto de si do modo como preferisse. As distâncias entre aquelas ilhas é uma ilusão.

Na hipótese levantada, a materialidade da forma como o andarilho lidaria com a pintura é análoga ao manuseio das imagens e sons através da tecnologia do vídeo por Godard. Para ele, uma vez que foram feitos, todos os materiais pertencem a uma espécie de “arquivo universal”, e por isso permitem ser usados de maneira distinta daquela da origem deles. Histoire(s) du cinéma é como uma corrente de magma, as imagens estão queimadas, atingidas por aquela saturação própria do vídeo: as obras-primas de pintores renascentistas, desprovidas da sua aura original, nivelam-se aos filmes da Hollywood clássica que, por sua vez, igualam-se, no arsenal de possibilidades do cineasta, a filmes pornográficos dos anos 1930. Godard enfia suas mãos no fundo dos baús, inventa novas histórias, novas disposições para esses objetos, os “pigmentos” que o cercam. Abole as distâncias espaciais e temporais. As imagens interessam-no mais pelo que elas têm de novo, no contato com outras das quais até então permaneceram afastadas.

Das duas bordas laterais da pintura, saem linhas diagonais que convergem para o centro do quadro e, portanto, apontam para o próprio caminhante, de costas para nós e de frente para a paisagem. Romantismo ou a primazia do autor: a criação individual é análoga à criação divina, o mundo é expressão daquele que o observa. Onde termina a natureza e começa o homem? Onde termina o que ele enxerga e começa o que nós enxergamos? Parece haver uma fusão do nosso ponto de vista com o dele. Nesse sentido, as montanhas cobertas por névoas perdem suas coordenadas geográficas concretas e passam a ser a representação de um estado mental, mais geral, daquele homem em relação ao mundo – e vale lembrar como na psicanálise a metáfora do mar onde tudo está imerso é uma recorrência ao se tratar do inconsciente.

Relatos apontam que aquele é um autorretrato do pintor, assim como Histoire(s) du cinéma é um documentário em primeira pessoa, no limite do idiossincrático. Perdemo-nos na correnteza de ideias de Godard: se ele une um filme pornográfico ao primeiro movimento de uma sinfonia de Schubert, priva-nos da lógica por trás disso que o possibilitou fazer tal relação, como acontece num lapso freudiano. Entre os habitantes das várias ilhas que Godard visita estão presentes obsessões históricas dele: seus filmes preferidos, seus próprios filmes, autores favoritos (Bergman, Hitchcock, Rossellini) e pessoas queridas (Eric Rohmer, François Truffaut, Henri Langlois), confrontados aos seus maiores medos, frustrações e temores, como a possibilidade de essa história não existir mais ou de que o cinema não passe de um ponto luminoso numa galáxia distante. Dada a maneira como ao adentrar tão profundamente o turbilhão da mente desse homem ouvimos a sua voz ecoar como que vinda do fundo da morte, tudo o que desejamos é emergir dali imediatamente e impedir que esse horrível apocalipse um dia possa ter vez.

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