A primeira cena de Sully é um pesadelo. O piloto sonha que o avião cai no meio de Nova York. As últimas palavras dele são uma derradeira declaração de amor à esposa.
Na primeira sessão sobre o evento do pouso no rio Hudson, questionam-no justamente a respeito do casamento. Ele parece constrangido pela pergunta e, ao dizer que os problemas que possui são iguais aos de outras pessoas, parece esconder que no fundo a relação lhe causa, sim, preocupações.
A personagem da esposa de Sully é trazida ao filme em outros momentos, sempre separada fisicamente do protagonista. Eles conversam por telefone, ela reclama dos repórteres que batem com insistência à porta e do fato de a vida deles ter sido virada pelo avesso.
A relação de Sully com a esposa é o primeiro de uma série de círculos concêntricos que exploram o fato de haver uma desordem em cena: o próprio piloto (espécie de Jó), apesar dos vários anos de experiência, passa a se colocar em questão e duvidar da proeza que realizou; além disso, há um país inteiro cuja ferida aberta pelo 11 de setembro não havia ainda sido cicatrizada.
O filme de Clint Eastwood é a história de uma restauração, em vários níveis: Sully, ao final, sente orgulho daquilo que foi capaz de fazer e, através da sua história, o país volta a poder olhar para o céu com esperança e pensar que nem só os anjos têm asas - ou que anjos existem, mas nem todos as possuem.
O filme, porém, não conclui a história de Sully com a esposa. Desde a primeira cena havia sido criada uma expectativa pelo reencontro de ambos, a superação da distância, o abraço, o retorno à normalidade, a porta fechando nas suas costas, o inverso, enfim, do final de Rastros de Ódio, ao qual Eastwood já se remeteu alguma vezes em sua obra. Não veio.